Foi então que, com o ar e a
elegância de um guerreiro que cai aos pés do inimigo, ele vestira o luto que
por tanto havia adiado. É humanamente trabalhoso o confronto que se trava com a
morte, aliás, é quase que um espetáculo dramático esse tão peculiar equilíbrio
que chamamos de vida, e que por muitas vezes o tratamos tão somente como um
equilíbrio, uma equação que precisa ser balanceada a nosso favor, e tão somente
a ele. Esquecemos os pormenores que podem caber e acabar por completar os
espaços entre esse começo tão glorificado e esse fim tão abominado pela
maioria.
Desde muito tempo ele achava
que a morte acabava por ser um espetáculo de egos, um ritual de
auto-consolação, via no funeral o maior de todos os dramas que pode gerar o
egoísmo. Já quando pequeno, segurado pela mão da mãe ao pé do caixão de sua
avó, questionara “por que todos choram mamãe?”, e com um sibilo tão bem
ensaiado quanto o lenço que levou ao nariz, a progenitora explicou “ pois vovó
partira”.
Não foi ali, ou no dia seguinte, ou no mês seguinte (mas não importa
o tempo que se leva, mas o resultado que se tem) anos mais tarde ruminando memórias
que percebeu um detalhe já tão intrínseco que passa por despercebido aos
olhos, tão falhos que sabe-se lá por que Deus, ou explosão cósmica, ou qualquer
força que trate a metáfora, foram feitos tão falhos ao não poder olhar para o
lado de dentro. Percebera um dia que o sofrimento se dá não por quem morre, mas pelos que não
acabaram por ter o mesmo destino, sofre-se pelo egoísmo instintivo, sente-se não
a perda sentimental, mas sim a perda que diz respeito a posse.
Enfim, ele
acabou por chegar nesse ponto de confronto com a perda, do desfalque pessoal, e
por isso achava que sofria. Metodicamente, como costumava ser, tratou de passar
por todos os estágios da aceitação que algum dia lera em algum panfleto em uma
sala de espera. Negação, ira, barganha, depressão, aceitação. Tão suave ao
ponto de surpreender-se com a naturalidade que fluía de um estágio ao outro, sem
trancos, sem maiores dramas, acho porque acha-se que a morte pode acabar por
ser o maior deles, ou pelos mais otimistas, o fim deles.
Levantou-se da
cama, lavou-se, e partiu para a cerimonia fúnebre que esperava de longe ser a mais dolorosa que
presenciaria, aprontou-se como sugere o protocolo e estacou-se frente ao
espelho, começara o velório. Como diz a tradição, velou o morto em cada
segundo, cada detalhe, sofreu cada suspiro em que caberia sofrimento.
Manteve-se a vestir o próprio luto, a velar o próprio eu, ou o que um dia
acabou por ser. Ele tinha em algum canto cinza da consciência a certeza que
sabia não ser equivocada, de que morrera, e tinha razão, a morte vem em
diferentes alegorias, em diferentes embalagens e ele aceitara aquela que
julgara mais sutil. E tinha razão quanto a sutileza dos fatos, a mudança acaba
por ser uma morte velada, silenciosa, um acordo suave entre o que se é e o que
virá a ser.
Olhava para si próprio e via que o que lhe era cotidiano já não
vivia ali, aquele olhar não era o mesmo, o sorriso não menos, até os cabelos
obedeciam à outra harmonia. Definitivamente o que morava ali descansava, se em
paz ainda não sabia, mas que já fora substituído era fato, se melhor ou pior,
teria de aproveitar o tempo entre esse sutil nascimento que se dera em seu
interior e a morte futura que o aguardava para descobrir, afinal a morte assim
como a vida acaba por obedecer a um ciclo, onde o começo de uma é o fim de outra e vice versa.
Olhou novamente no espelho, apertou a gravata e saiu pela porta, sabia que
tinha pouco tempo para dar as boas vindas a esse novo estranho.